Pesquisa cria orelha artificial e deixa mais próxima possibilidade de tornar uma prática cotidiana a criação de órgãos humanos para transplante. Projetos científicos, porém, ainda dividem opiniões
Pesquisadores do Hospital Geral de Massachusetts, ligado à faculdade de medicina de Harvard, avançaram com as pesquisas relacionadas à sintetização de órgãos humanos para transplante, o que eliminaria a necessidade de doadores ou compatibilidade. A equipe desenvolveu uma orelha com formato humano a partir de uma estrutura de fios de titânio e polímeros, cobertos por um tecido cartilaginoso retirado da orelha de ovelhas e colágeno bovino. O órgão foi então inserido embaixo da pele de um rato, onde criou pele e vasos sanguíneos e se desenvolveu por 12 semanas até adquirir o tamanho de orelha adulta.
A pesquisa deixa mais próxima possibilidade de tornar uma prática cotidiana a criação de órgãos humanos para transplante, principalmente em casos de perda ou falência por doença ou desfiguração. A equipe gerenciada por Thomas Cervantes e Joseph Vacanti teve como principal novidade a estrutura de titânio, criada por impressoras 3D após escaneamento, que sustenta a orelha sem perda do formato, como costumava acontecer com projetos anteriores baseados apenas em material polimérico.
“Implantes de polímero são capazes de excelentes resultados estéticos, mas são inflexíveis, podem quebrar e possuem um risco de extrusão a longo prazo através da pele. A engenharia de tecidos cartilaginosos em orelhas se apresenta como uma alternativa promissora que pode superar as inconveniências das metodologias existentes”, diz o texto publicado nesta quarta, 31, pela revista britânica Journal of the Royal Society Interface.
Polêmica. Vacanti é responsável pelo primeiro caso em que um órgão humano foi gerado em um animal. Parceiro de Robert Langer, cientista do departamento de polímeros do MIT, Vacanti deu início a uma série de estudos que permitiria criar tecidos funcionais para transplantes por meio de bioengenharia, solução que poria fim ao drama das filas à espera de doadores. No início da década de 1990, ao lado de seu irmão Charles, elaboram uma orelha de material polimérico e inserem nas costas de um rato, gerando uma imagem bizarra do animal que causou muita polêmica na época e que ficou conhecido como “earmouse” (rato-orelha). Os resultados da pesquisa foram publicados em 1997 e, apesar do show de horrores, representou um avanço na área médica.
Desde então, o tema foi se desenvolvendo de formas diferentes em diversos lugares do mundo, mas principalmente no Japão, na Inglaterra e nos Estados Unidos, na mesma Massachusetts, onde tudo começou. Em 2007, o Dr. Shinya Yamanaka, da Universidade de Tóquio, desenvolve o processo quase hacker de reprogramar uma célula somática (não ligadas à reprodução, como por exemplo as da pele) a partir do uso de vírus que alteram seus genes a se tornar uma célula-tronco pluripotente, ou seja, que pode se diferenciar em células embrionárias da endoderme (que forma estômago, intestino e pulmões), mesoderme (músculos, sangue e ossos) e ectoderme (tecidos de revestimento e sistema nervoso).
A descoberta representou uma revolução na época por permitir o uso de células de qualquer natureza para o desenvolvimento de órgãos, por exemplo, sem a necessidade de extração embrionária, prática questionada por governos e instituições religiosas. Não por acaso o Dr. Yamanaka levou o prêmio Nobel de Medicina em 2012.
Em 2010, em Massachusetts, uma equipe liderada pelo Dr. Korkut Uygun faz experimentos extraindo órgãos doentes, no caso um fígado, limpando-os (literalmente) com material detergente, mantendo a estrutura (vasos sanguíneos, etc) e inserindo células-tronco pluripotentes induzidas (iPS) tiradas da pele para regenerá-lo. O órgão novo foi testado em um rato que mostrou resultados positivos, mas que sobretudo apontavam para um caminho promissor no futuro. Três anos depois, no mesmo lugar, o Dr. Harald Ott fez uso do mesmo método para criar rins saudáveis a partir de órgãos doentes.
Após inserir as células, o rim ficou em um biorreator, equipamento que imita o ambiente do organismo humano, por 12 dias; após sair, o órgão se mostrou com 23% da sua capacidade total, após ser inserido no corpo do rato, no entanto, a sua potência caiu para 5%. Mesmo assim, o autor da pesquisa disse não ter desanimado, pelo contrário, por garantir que com 10% a 15% da capacidade já é possível ficar livre de hemodiálise, afirmou que seus resultados apontavam para um futuro onde a espera por transplantes de rins poderia ter um final mais feliz do que o da maiorai dos casos.
Limpeza. Em 2011, uma equipe chefiada pelo Dr. Seifalian, da University College London, criou aquele que seria o primeiro órgão sintetizado a ser, de fato, transplantado em um ser humano. A traqueia construída em vidro a partir do modelo 3D da original foi implantada no africano Andemariam Telesenbet Beyene, paciente com câncer, com então 36 anos. O material era todo vazado internamente e foi formado com o uso de células-tronco extraídas da médula do próprio Beyene. Desde o ano passado, o laboratório do Dr. Seifalian, que começou a ser chamado de "loja de órgãos humanos", se dedica a criar narizes, orelhas e artérias (resolvendo problemas de ponte de safena, por exemplo) usando nanotecnologia e células-tronco. O processo é o mesmo: molda-se a estrutura, acrescentam-se as células embrionárias e deixa tudo crescer no biorreator. O bizarro vem a seguir. Para fazer o transplante em um paciente que perdeu o nariz por consequência de um câncer, o Dr. Seifalian inseriu o projeto de nariz (moldade para ser idêntico ao original) embaixo da pele do braço do seu futuro dono. Após três meses, o órgão criou pele e vasos sanguíneos e estava, em teoria, pronto para ir para o rosto, o que ainda não ocorreu.
No Japão, cientistas testaram técnicas que impressionaram os pesquisadores ocidentais da área. Na Universidade de Yokohama, em 2012, o biologista Takanori Takebe, especialista em células-tronco, conseguiu desenvolver um fígado in vitro, ou seja, sem o uso de organismos vivos. Fazendo uso de células pluripotentes induzidas e as direcionaram para a formação do órgão que queriam. Nove dias depois, hepatócitos, células típicas do fígado, se desenvolveram. Takebe acrescentou, como numa receita de bolo, mais dois tipos de células que desenvolveriam as estruturas vasculares (endoteliais) e as chamadas células do futuro, as mesenquimais (retiradas da médula), capazes de se diferenciar em osso, cartilagem ou gordura. Dois dias depois estava formado uma espécie prematura de fígado, medindo cerca de 5 mm.
Quimera. No mês passado, outro grupo de cientista japoneses, esses da mesma instituição que o Nobel Yamanaka, anunciaram estar apenas esperando o sinal verde legal do governo para implantar embriões suínos com células-tronco induzidas de seres humanos em porcos. A injeção de células humanas em embriões animais é permitida, mas inserir os tais embriões nos animais com o material, não. A expectativa é de desenvolver órgãos variados, como fígados, rins, pâncreas (considerado o mais fácil de se fazer) ou pulmões humanos dentro de animais. Os japoneses fizeram testes entre porcos de espécies diferentes e tiveram sucesso. Segundo os pesquisadores, o uso de porcos se explica pela boa compatibilidade com o organismo humano, vide o uso suíno para testes no tratamento de diabete.
Se o governo permitir e as experiências derem certo, o grupo da Universidade de Tóquio espera fazer o transplante de órgão em humanos com o que eles chamam provocativamente de “embrião quimérico” (referência à figura mítica grega Quimera, uma mistura de leão, cabra e serpente). As polêmicas já eram suficientes para os cientistas enquanto os embriões estavam sendo implantados nos animais. Mas aí alguém se perguntou: “e se um desses cientistas for um fã de H.G. Wells e resolver dar uma de Doutor Moreau e fizer experimentos em humanos, gerando assim criaturas híbridas?”.
A possibilidade de fazer o experimento existe, já a de se obter algum resultado é praticamente impossível. A desconfiança do que poderia surgir dessa história foi tão grande que em 2006, o então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, garantiu em seu Discurso sobre o Estado da União que impediria legalmente qualquer pesquisa que tentasse criar humanos-animais. A medida vem sendo aprovada até hoje separadamente por estados americanos.
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