Há um conceito chamado "imunidade coletiva". É a vacinação em massa de uma comunidade, de modo que se interrompa a cadeia de infecção. A especialista em saúde Romina Libster nos mostra como a imunidade coletiva evitou um surto de H1N1 em sua cidade natal (Foto: Gisele Federicce)
O poder da imunidade coletiva.
Como as vacinas ajudam a prevenir doenças, mesmo naqueles que não se vacinaram
Chegada da COVID-19 pode ser oportunidade para impulsionar desenvolvimento de vacinas de nova geração, que nos defendam melhor nas pandemias do futuro
O poder da imunidade coletiva. Como as vacinas ajudam a prevenir doenças, mesmo naqueles que não se vacinaram
Há um conceito chamado "imunidade coletiva". É a vacinação em massa de uma comunidade, de modo que se interrompa a cadeia de infecção. A especialista em saúde Romina Libster nos mostra como a imunidade coletiva evitou um surto de H1N1 em sua cidade natal
Vídeo: TED – Ideas Worth Spreading
Tradução: Fernando Gonçalves. Revisão: Fabrício Cassilhas
Romina Libster, cientista médica, investiga a gripe e outras moléstias respiratórias provocados por vírus, com foco em vacinas que efetivamente impeçam a dispersão desses agentes infecciosos.
Romina Libster é pesquisadora do Conselho Nacional de Ciência e tecnologia, em Buenos Aires, Argentina.
Tradução integral da palestra de Romina Libster:
Um dos primeiros pacientes que eu atendi como pediatra foi Sol, uma linda bebê de um mês de vida que deu entrada com sinais de infecção respiratória grave. Até então, eu nunca tinha visto um paciente piorar tão rápido. Em dois dias, ela estava ligada a um respirador e no terceiro dia ela morreu. Sol tinha coqueluche. Após discutir o caso, e passar por uma catarse angustiante, eu lembro que o meu chefe-residente disse: "Tudo bem, respire fundo. Lave o rosto. Agora vem a parte mais difícil. Temos que falar com os pais." Naquele momento, milhares de questões vieram à minha mente: "Como uma bebê de um mês de vida pode ser tão infeliz?" "Poderíamos ter feito algo a respeito?"
Antes de existirem as vacinas, várias doenças infecciosas matavam milhões de pessoas por ano. Durante a epidemia de gripe de 1918, 50 milhões de pessoas morreram. Isso é mais do que a atual população da Argentina. Talvez os mais velhos se lembrem da epidemia de pólio que ocorreu na Argentina em 1956. Naquela época, não existia vacina disponível contra a pólio. As pessoas não sabiam o que fazer, estavam desoladas. Elas pintavam as árvores com cal. Colocavam bolsinhas de cânfora nas roupas íntimas das crianças, como se isso pudesse ajudar. Durante a epidemia de pólio, milhares de pessoas morreram. E milhares de pessoas ficaram com danos neurológicos graves. Eu sei disso porque li a respeito, pois graças às vacinas, minha geração teve a sorte de não viver uma epidemia tão terrível quanto essa.
As vacinas são um dos grandes feitos da saúde pública do século 20. Depois da água potável, elas são as intervenções que mais reduziram a mortalidade, mais até do que os antibióticos. As vacinas erradicaram doenças terríveis do planeta, como a varíola, e conseguiram reduzir, significativamente, a mortalidade causada por outras doenças, como o sarampo, coqueluche, pólio, entre outras.
Todas essas doenças, estão dentro do grupo de doenças consideradas imunopreveníveis. O que isso quer dizer? Que elas são potencialmente preveníveis, mas para que isso aconteça, algo deve ser feito. Você precisa se vacinar. Eu imagino que a maioria, se não todos que estão aqui hoje, foi vacinada em algum momento da vida. Agora, eu não tenho tanta certeza se muitos de nós sabemos quais vacinas ou reforços deveríamos receber depois da adolescência. Você já se perguntou, quem estamos protegendo quando nos vacinamos? O que eu quero dizer com isso? Existe algum outro efeito além da nossa própria proteção?
Deixe-me mostrar algo. Imagine por um momento que nós estamos numa cidade que nunca teve um caso de uma doença em particular, como, por exemplo, o sarampo. Isso significa que ninguém na cidade teve contato com a doença. Ninguém tem defesas naturais nem foi vacinado contra o sarampo. Se um dia, uma pessoa com sarampo aparecer na cidade, a doença não encontrará muita resistência. Ela começará a ser transmitida de pessoa para pessoa e, em pouco tempo, se disseminará por toda a comunidade. Depois de um tempo, grande parte da população estará doente. Isso acontecia quando não existiam as vacinas.
Agora, imagine o caso totalmente oposto. Estamos numa cidade, onde mais de 90% da população têm defesas contra o sarampo, o que significa que já tiveram a doença e desenvolveram defesas naturais, sobreviveram ou foram imunizados contra o sarampo. Se um dia, uma pessoa com sarampo aparecer na cidade, a doença encontrará maior resistência e não será transmitida facilmente de pessoa para pessoa. A disseminação, provavelmente, será contida e um surto de sarampo não ocorrerá.
Preste atenção a isto: As pessoas que estão vacinadas não estão apenas se protegendo, mas ao impedir a disseminação da doença, dentro da comunidade, estão, indiretamente, protegendo as pessoas dessa comunidade que não estão vacinadas. Elas criam uma espécie de escudo protetor que as protegem de entrarem em contato com a doença, assim elas estão protegidas. Esta proteção indireta, que as pessoas não vacinadas dentro da comunidade recebem simplesmente por estar cercadas por pessoas vacinadas, se chama imunidade coletiva.
Muitas pessoas na comunidade dependem, quase que exclusivamente, dessa imunidade coletiva para se proteger contra doenças. Essas pessoas não são desenhos num gráfico. Elas são nossos sobrinhos, nossos filhos que talvez sejam muito novos para ter tomado as primeiras vacinas. São nossos pais, nossos irmãos, nossos conhecidos que talvez tenham uma doença ou tomam remédios que diminuem suas defesas. Existem também pessoas que são alérgicas a uma determinada vacina. Elas poderiam estar entre nós, qualquer um que foi vacinado, mas que a vacina não produziu o efeito esperado, porque nem todas as vacinas são 100% efetivas. Todas essas pessoas dependem, necessariamente, da imunidade coletiva para se proteger contra doenças.
Para conseguir o efeito da imunidade coletiva, é necessário que uma porcentagem da população esteja vacinada. Esta porcentagem é chamada de limiar. O limiar depende de muitas variáveis: das características dos germes; das características das respostas imunes geradas pela vacina. Mas todas elas têm algo em comum: Se a porcentagem da população em uma comunidade que está vacinada estiver abaixo desse número limiar, a doença começará a ser transmitida livremente e poderá gerar um surto dentro da comunidade. Mesmo doenças que, de certo modo, estavam controladas podem reaparecer.
Isso não é só uma teoria. Isso aconteceu e ainda acontece. Em 1998, um pesquisador britânico publicou um artigo em uma das mais importantes revistas de medicina, dizendo que a vacina tríplice viral, dada contra o sarampo, caxumba e rubéola, estava associada ao autismo. Isso gerou um impacto imediato. As pessoas pararam de se vacinar e de vacinar seus filhos. E o que aconteceu? O número de pessoas vacinadas, em muitas comunidades pelo mundo, caiu abaixo desse limiar. E houve surtos de sarampo em várias cidades do mundo, nos Estados Unidos, na Europa. Várias pessoas adoeceram. Pessoas morreram de sarampo. O que aconteceu?
Esse artigo também gerou uma grande comoção na comunidade médica. Dezenas de pesquisadores começaram a avaliar se isso era verdade. Não apenas ninguém encontrou uma relação entre a vacina tríplice viral e o autismo em termos populacional, mas também foi descoberto que o artigo possuía alegações incorretas. Mais do que isso, era fraudulento. Era fraudulento. Na verdade, a revista se retratou publicamente pelo artigo em 2010. Uma das principais preocupações e desculpas para não se vacinar são os efeitos colaterais.
As vacinas, como outros medicamentos, podem ter efeitos colaterais. A maioria é leve e temporário. Mas os benefícios são sempre maiores do que as possíveis complicações. Quando estamos doentes, queremos melhorar rápido. Muitos de nós aqui, tomamos antibióticos quando temos uma infecção, tomamos anti-hipertensivos quando nossa pressão está alta, tomamos remédios para o coração. Por quê? Porque estamos doentes e queremos melhorar rápido. E não questionamos isso. Por que é tão difícil pensar em prevenção de doenças e nos cuidarmos quando estamos saudáveis? Cuidamos de nós quando estamos doentes ou em situações de perigo iminente.
Eu creio que a maioria dos que estão aqui, se lembra da pandemia de gripe A que eclodiu em 2009 na Argentina e no mundo todo. Quando os primeiros casos vieram à tona, nós, aqui na Argentina, estávamos entrando no inverno. Não sabíamos absolutamente nada. Estava um caos. As pessoas usavam máscaras nas ruas, corriam às farmácias para comprar álcool em gel. Formavam filas nas farmácias para se vacinar, mesmo sem saber se estavam tomando a vacina correta que as protegeria contra o novo vírus. Não sabíamos absolutamente nada. Naquela época, além da minha bolsa de estudos na Fundação INFANT, eu trabalhava como pediatra em domicílio para uma operadora de plano de saúde. Eu lembro que o meu turno começava às 8h, e às 8h já tinha uma lista de 50 visitas agendadas. Era um caos. Ninguém sabia o que fazer. Me lembro dos tipos de pacientes que eu examinava. Eram um pouco mais velhos do que aqueles que costumávamos ver no inverno, com quadros de febre mais prolongados.
E lembro de ter comentado com o meu orientador, e ele também ouviu de um colega, sobre o grande número de mulheres grávidas e adultos jovens sendo hospitalizados na UTI com quadros de difícil tratamento. Naquele momento, procuramos entender o que estava acontecendo. Na segunda-feira, pegamos o carro e fomos para um hospital na Província de Buenos Aires que era referência para os casos do novo vírus influenza. Chegamos ao hospital, e estava lotado. Toda a equipe de saúde estava vestida com roupas de biossegurança, tipo NASA. Nós tínhamos máscaras para o rosto no bolso. Eu, hipocondríaca, não respirei por duas horas. Mas podíamos ver o que estava acontecendo. Imediatamente, começamos a entrar em contato com pediatras de seis hospitais na capital e na Província de Buenos Aires. Nosso principal objetivo era descobrir como esse novo vírus se comportava em contato com as nossas crianças, Um trabalho desgastante. Em menos de três meses, conseguimos ver quais características tinha este novo vírus H1N1 nas 251 crianças internadas nos hospitais por causa dele. Podíamos ver quais crianças que mais adoeciam: crianças abaixo dos quatro anos, especialmente aquelas menores de um ano; pacientes com doenças neurológicas; crianças com doenças pulmonares crônicas. Identificar esses grupos de risco foi muito importante para poder inclui-los como grupos prioritários nas recomendações da vacina contra a gripe, não apenas aqui na Argentina, mas também em outros países onde a epidemia ainda não tinha chegado.
Um anos depois, quando a vacina contra a epidemia do vírus H1N1 estava disponível, quisemos ver o que tinha acontecido. Depois de uma enorme campanha de vacinação, destinada a proteger os grupos de risco, esses hospitais, com 93% dos grupos de risco vacinados, não receberam mais nenhum paciente por causa da pandemia do vírus H1N1. (Aplausos) Em 2009: 251. Em 2010: zero.
A vacinação é um ato de responsabilidade individual, mas tem um grande impacto coletivo. Se eu me vacino, não estou apenas me protegendo, mas também protegendo os outros. Sol tinha coqueluche. Sol era muito jovem e ainda não tinha tomado a primeira vacina contra a coqueluche. Mesmo assim, ainda me pergunto, o que teria acontecido se todos, ao redor de Sol, tivessem sido vacinados.
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