MEIO HUMANO, MEIO BACTÉRIAS: O QUE OS MICRÓBIOS DO NOSSO CORPO PODEM FAZER POR NÓS

  

O microbioma humano é um complexo ecossistema de micróbios que funciona como outro órgão dentro do nosso corpo.
O microbioma humano é um complexo ecossistema de micróbios que funciona como outro órgão dentro do nosso corpo. Reprodução/Unsplash

Por Jéssica Mouzo, El País

 

Não estamos sozinhos. Nunca completamente. Embora não possam ser vistos a olho nu e não façam barulho, estamos sempre acompanhado de milhares e milhares de bactérias, vírus, fungos e leveduras, archaea e protozoários. Um imenso mundo vivo de micróbios povoa, em razoável harmonia, a pele, a vagina, a boca, os pulmões e, principalmente, o intestino, para auxiliar o ser humano em funções tão básicas como proteger-se contra patógenos externos ou metabolizar certos alimentos. É o microbioma humano, um complexo ecossistema de micróbios que funciona como outro órgão dentro do corpo. Algumas de suas funções essenciais já são conhecidas, mas a comunidade científica ainda está tentando descobrir, mais profundamente, qual seu papel crítico na saúde e na doença: há mudanças neste micromundo relacionadas a doenças infecciosas, doenças autoimunes e até mesmo a resposta a medicamentos contra o câncer.

Um indivíduo é, nas palavras do microbiologista Ignacio López-Goñi , "meio humano, meio bactéria". É um pouco dos dois porque há tantas células humanas no corpo quanto micróbios desse tipo.

— Temos cerca de 23 mil genes humanos, mas nossos micróbios, como um todo, podem abrigar cerca de três milhões de genes. Alguns já consideram esse microbioma nosso segundo genoma. Somos superorganismos em que 1% do nosso genoma é herdado de nossos pais e 99% de nossos micróbios — sintetiza em seu livro "Microbiota: os micróbios do seu organismo".

De todos esses micro-organismos minúsculos que circulam livremente pelo corpo, as bactérias são o grupo mais comum do que se tem chamado de microbiota ou microbioma — alguns especialistas usam os dois termos como sinônimos, embora tenham uma nuance diferente: o primeiro se refere à comunidade dos micróbios e, o segundo, aos seus genes.

— Estima-se que mais de 10 mil espécies bacterianas diferentes habitam nosso corpo saudável, das quais menos de 1% podem ser patógenos potenciais —, diz López-Goñi em seu livro. A maior diversidade bacteriana é encontrada na boca e no trato intestinal.

A comunidade científica tem conspirado para desvendar o que fazem e como se organizam esses micróbios que coabitam nos humanos. E embora tenham descoberto algo, ainda há muito a saber, diz Jordi Guardiola, chefe do serviço do Sistema Digestivo do Hospital de Bellvitge de Barcelona e um dos chefes da Unidade de Estudo do Microbioma de seu centro:

— A principal coisa que sabemos é que sabemos muito pouco: o microbioma é extremamente complexo — diz José Manuel Fernández-Real, cientista do Instituto de Pesquisas Biomédicas Josep Trueta de Girona. Para ele, a microbiota é como a caixa preta de um avião, "um registro contínuo da atividade diária", desde a alimentação até o nível de estresse ou da alegria.

— É um volume brutal de informações que temos que desvendar — admite o especialista, que também é cientista do Centro de Pesquisa Biomédica da Obesity and Nutrition Network.

Cada microbioma é único. Não há dois iguais. E eles mudam constantemente com a idade, hábitos, dieta ou uso de drogas. Existem cerca de 150 espécies bacterianas dominantes, diz Francisco Guarner, gastroenterologista e membro do comitê científico do International Human Microbiome Consortium.

— Em um estudo foi mostrado que havia apenas 18 espécies que estavam em todos os participantes, mas em algumas estava no nível 1 e, em outras, no nível 10 mil. Não conseguimos definir o núcleo essencial das bactérias. Não eram misturas aleatórias, mas ecossistemas vivos. E muda muito: não é estático, mas é estável, há sempre um equilíbrio, um equilíbrio entre as bactérias.

A microbiota intestinal, sendo a maior, mais variada e com as funções orgânicas mais importantes, é a área mais estudada. O papel delas, ressalta Guarner, é fundamental:

— Temos um órgão, que é o cólon, preparado para receber as bactérias e queremos que elas estejam lá para nos ajudar a digerir os alimentos. No cólon existe uma bolsa, o ceco, onde se deposita o que não conseguimos absorver com o pâncreas. As células vegetais, por exemplo, são digeridas por bactérias no ceco.

Estimular o sistema imunológico

A microbiota intestinal é também "um grande filtro do ambiente externo. É um marcador da dieta que seguimos, um transformador de muitas substâncias" afirma Fernández-Real, e é também um sistema imunológico da espécie que nos protege de elementos estranhos.

De fato, acrescenta Guardiola, outra de suas funções é estimular o sistema imunológico:

— Os micróbios interagem entre si e conosco. Há uma conversa constante. Nos primeiros anos de vida, é essencial ter um microbioma para desenvolver o sistema imunológico normalmente.

O microbioma é influenciado pela dieta, medicamentos, tabagismo, exercício físico, doenças. O uso de antibióticos na primeira infância, por exemplo, pode ser um fator de risco que altera esse equilíbrio microbiano.

— O preço que temos que pagar para não morrer de infecções é o aparecimento de doenças imunomediadas. A maioria das variantes genéticas detectadas como fatores de risco para essas doenças são genes que codificam aspectos relacionados à microbiota — diz Guardiola.

Nascer de cesariana, por exemplo, sem estar impregnado com o microbioma vaginal da mãe, aumenta o risco de asma ou alergias, a amamentação também influencia na composição da microbiota da criança e é fundamental para a criação do seu sistema imunológico. Especialistas apontam que distúrbios no desenvolvimento da microbiota durante a maturação do sistema imunológico podem prejudicar a tolerância imunológica e levar a doenças autoimunes.

A comunidade científica tem se concentrado em descobrir exatamente qual é o papel do microbioma quando alguém está saudável ou doente. Uma alteração do microbioma pode causar doenças ou as doenças modulam o ecossistema microbiano? Provavelmente ambos. Pesquisadores de meio mundo começam a definir como esses microrganismos medeiam várias patologias, mas não é tarefa fácil delimitar sua influência.

— Com certeza, a microbiota é mais um fator com o qual não contávamos, mas não necessariamente o fator decisivo — afirma Guarner.

O que eles sabem com certeza, explica o gastroenterologista, é que, em maior ou menor grau, esses micróbios influenciam no câncer de cólon e mama, depressão , alergias, obesidade, diabetes tipo 2 e colite ulcerativa. O fator comum que aparece em quase todas as doenças é a perda da diversidade e isso possivelmente também está relacionado a dietas ricas em proteínas e gorduras e com poucos vegetais. A microbiota que tínhamos no cólon para digerir aqueles vegetais se perde e desaparece —, pondera Guarner.

Em camundongos, existem estudos que também sugerem que a microbiota intestinal pode influenciar a neurofisiologia, o comportamento e até mesmo o processo de cicatrização de feridas. Verificou-se também que pode afetar a cognição e a ansiedade. Outras pesquisas, também em modelos animais, sugeriram que os micróbios intestinais são potencialmente relevantes para doenças neurodegenerativas, como o Parkinson, e descobriram que — há uma diferença significativa no componente dos micróbios intestinais em crianças com e sem distúrbios do espectro —. As doenças periodontais, que se espalham por uma ruptura da microbiota oral, também aumentam o risco de doença cardiovascular em até 25%.

No câncer, foi descrito que a alteração da microbiota pode desencadear inflamação e uma resposta imune que estão relacionadas ao aparecimento de tumores. Guardiola explica, por outro lado, que também estão estudando se uma determinada microbiota pode predispor ou não a um tumor. Por enquanto, acrescenta: — Foi encontrada uma relação muito clara entre o microbioma e a possibilidade de responder à imunoterapia. A microbiota dos pacientes que respondem à imunoterapia é diferente da daqueles que não respondem. Se você passar isso para animais experimentais e colocar fezes de pacientes responsivos aos camundongos não responsivos, eventualmente eles responderão também. A microbiota tem a capacidade de influenciar esses tratamentos e pode ser utilizada como fator prognóstico ou como tratamento.

Transplante de fezes

Uma doença intimamente ligada à microbiota é a infecção por Clostridioides difficile, uma bactéria muito resistente que, em pessoas debilitadas, pode causar colite leve (diarréia) ou grave, com megacólon tóxico que pode levar à morte. Essa doença está claramente relacionada a uma alteração da microbiota a ponto de o transplante de microbiota fecal de doador ser o tratamento indicado para pacientes que não respondem às terapias convencionais.

— Em 20% dos pacientes, a infecção é recorrente. Então, a possibilidade de recidiva novamente agora sobe para 40% —, diz Guardiola, que realiza cerca de vinte transplantes desse tipo por ano em seu hospital.

O estudo da microbiota tem seguido diferentes caminhos, desde descrevê-la até entender sua função ou aprender a modulá-la como ferramenta terapêutica. Neste último campo, o transplante de fezes, que repovoa o intestino do paciente com a microbiota fecal de um doador saudável, tem sido uma das estratégias mais promissoras. No entanto, por enquanto, só teve sucesso na infecção por Clostridioides difficile. Para intestino irritável, observa Guarner, não se saiu tão bem.

— Em uma doença há um defeito de algumas espécies e uma superabundância de outras. Quando você tira as fezes de um doador, você transplanta para lá umas bactérias boas e outras ruins e, talvez, as boas não caibam bem naquele intestino inflamado e as ruins cabem e a inflamação aumenta. Isso aconteceu na colite ulcerosa, onde alguns transplantes correram bem e outros não. O problema é que você introduz um mundo com muitas bactérias desconhecidas e a situação particular de cada paciente pode fazer com que algumas não se encaixem bem.

Guardiola, que montou um banco de fezes em seu hospital, concorda que, embora o transplante fecal seja "uma necessidade" para tratar o Clostridioides difficile , — Em outros aspectos não foi tão bem quanto o previsto —, como na doença inflamatória intestinal. Mas a pesquisa continua, também com coquetéis de bactérias — Desenhados em laboratório e perfeitamente caracterizados para que não haja surpresas — com micróbios potenciais desconhecidos, aponta Guarner. A agência reguladora americana (FDA) aprovou em novembro o primeiro biodroga de microbiota fecal pré-embalada para Clostridioides difficile.

Os cientistas também estão experimentando bactérias modificadas em laboratório para modular a microbiota e probióticos e prebióticos continuam sendo testados, embora a eficácia dos dois últimos permaneça escassa e altamente controversa. — Como ideia, os probióticos são atraentes, mas na prática clínica raramente conseguimos quase nada —, conclui Guardiola. Fernández-Real concorda: — Falar sobre probióticos que tentam mudar a saúde é difícil. É como tentar mover um porta-aviões com um monte de moscas.

Dieta mediterrânea

A investigação continua. Mas a nível terapêutico, os especialistas consultados defendem começar por aquilo que se sabe ser positivo: a dieta mediterrânica. — As pessoas que o seguem têm o mais próximo que conhecemos de um microbioma saudável —, defende Fernández-Real. Guarner concorda: — Devemos recuperar a funcionalidade da microbiota, voltar às dietas ancestrais, comer lentilhas, pimentas e beringelas.

Sobre os meandros do microbioma, eles admitem, há um mundo a ser descoberto. Por exemplo, o papel dos vírus neste intrincado ecossistema, aponta Guarner: — O viroma é o mais desconhecido. Já foram encontrados 35 mil vírus no intestino: 98% são vírus que afetam bactérias, não células humanas, e 75% deles não sabemos o que fazem.

Porque não sabem, não sabem ou sequer sabem exatamente o que é — A definição de um microbioma saudável —, lamenta Fernández-Real. E nem onde chega a influência do microbioma. — O difícil é dizer quando não influencia. O que se pode dizer com certeza que está acontecendo é que entramos em um caminho, nos últimos 70 anos, em que a microbiota se atrofiou muito. Com a mudança dos padrões nutricionais e o uso de antibióticos, tornou-se atrófico —, diz Guarner.

Há muito o que fazer. Quanto a — Melhor compreensão dos mecanismos pelos quais a microbiota e o sistema imunológico se comunicam —, Guardiola concorda. Para Guarner, — A chave será detectar desvios críticos para o microbioma intestinal e encontrar métodos para corrigi-los.

Fernández-Real, por sua vez, propõe uma reviravolta: — Não insistir em mudar as bactérias [da microbiota], mas sua função, porque elas continuarão conosco.


Fonte:https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2023/01/meio-humanos-meio-bacterias-o-que-os-microbios-que-habitam-nosso-corpo-podem-fazer-por-nos.ghtml


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