Câncer em jovens: por que os casos em pessoas com menos de 50 anos cresceram quase 80%?
Um estudo publicado na revista BMJ Oncology estima que a causa do aumento global esteja associada a hábitos de vida
Por
Jessica Mouzo
Em El País
26/09/2023 13h38 Atualizado há 3 semanas
A idade sempre foi, no entanto, a variável mais importante: quanto mais velho você for, maior será o risco de esses erros ocorrerem porque as células se degradam, os mecanismos de controle são perdidos e o sistema de defesa se deteriora. No entanto, algo tem vindo mudar na propagação tradicional da doença: a idade continua a ser um fator determinante, mas cada vez há mais casos entre adultos jovens e as causas não são claras.
Um estudo publicado recentemente na revista BMJ Oncology estima que a incidência global de tumores entre aqueles com menos de 50 anos de idade aumentou 79% na últimas três décadas. Embora a interpretação dos dados exija cautela pelas diferenças entre regiões - quanto mais desenvolvido o país, maior a incidência de câncer de início precoce -, pela utilização de diferentes fontes de informação e pela probabilidade de subnotificação nos países em desenvolvimento, os especialistas apontam os hábitos de vida pouco saudáveis, a má alimentação, o sedentarismo, a poluição, o consumo excessivo de antibióticos ou os fatores reprodutivos, entre outros, como os responsáveis pelo crescimento do câncer de início precoce. Eles também não descartam a possibilidade de que outros fatores, ainda desconhecidos, estejam mediando essa reviravolta no roteiro.
Os pesquisadores consultados, por exemplo, também acrescentam a influência de melhorias na detecção precoce e no refinamento das técnicas de diagnóstico. César Rodríguez, presidente da Sociedade Espanhola de Oncologia Médica (SEOM), destacou em entrevista anterior ao El País que estes fenômenos nunca são explicados por uma única causa e que, além do impacto do estilo de vida ocidental, também "o diagnóstico precoce, às vezes, está relacionado a melhores técnicas de diagnóstico." A mamografia digital atual, por exemplo, tem mais precisão do que as feitas há 30 anos, exemplifica o oncologista:
— Quanto mais você refinar seus métodos de diagnóstico e a capacidade de realizar estudos que encontrem um tumor, provavelmente você os diagnosticará mais cedo — explica.
Andrea Wizner tinha apenas 30 anos quando foi diagnosticada com um tumor de mama. No início de 2020, ele notou “uma bolinha do tamanho de um grão de bico” no peito e consultou os médicos. Ela estava nervosa e com medo, mas eles a tranquilizaram: na idade dela, era improvável um tumor. Certamente seria um “pedaço de gordura”, lhe garantiram. Mas a expressão no rosto do seu oncologista quando recebeu os resultados dos exames médicos frustrou as suas boas expectativas:
— Aquele grão-de-bico se tornou tornou um carcinoma ductal infiltrante (um tipo de câncer de mama em que as células cancerígenas já conseguiram romper a parede do duto de leite, chegando ao tecido adiposo da mama). E foi aí que começou a corrida — conta a jovem, hoje com 34 anos.
Andrea se perguntou por quê. Por que ela?
— Eu não tinha tido sintomas anteriores nem tinha colocado os pés em um hospital na minha vida. Sou atleta. Moro numa ilha [Ibiza] com ar puro… fiquei pensando como isso era possível — contou.
A jovem declara ainda que sentiu “medo e incerteza”. Não é fácil, admite hoje, enfrentar um diagnóstico de câncer nessa idade.
— Se você tem nessa idade, chega a pensar que teve que fazer algo errado. Mas eu sabia que não tinha pedido por isso de forma alguma — explica.
A comunidade científica ainda está tentando compreender este fenômeno, desde a sua dimensão até as causas. Nem sempre é possível estabelecer uma causalidade direta com o câncer ou mesmo quais os fatores que podem estar envolvidos. Mas há alguns pontos que os especialistas já têm claro, como o de que o estilo de vida tem um papel determinante:
"As mudanças na dieta, no estilo de vida e no ambiente desde o início do século XX, que levaram ao aumento das taxas de obesidade, inatividade física, dietas ocidentalizadas e poluição ambiental, podem ter afetado a incidência do câncer precoce. Além disso, o álcool, o fumo e as exposições prejudiciais durante a gravidez também podem ter afetado", afirmam os pesquisadores no artigo Oncologia BMJ.
Todas aqueles fatores habituais nas consultas, como o tabagismo ou uma alimentação pouco saudável, que também estão por trás de doenças cardiovasculares ou metabólicas, têm aumentado nas últimas décadas e podem estar a cobrar o seu preço, consideram os especialistas.
Ana Fernández Montes, membro do Conselho de Administração da Sociedade Espanhola de Oncologia Médica (SEOM) e oncologista do Complexo Hospitalar Universitário de Ourense, aconselha prestar atenção ao expossoma (medida cumulativa de influências ambientais e respostas biológicas associadas). Ou seja, todas as exposições ambientais — dieta, estilo de vida, microbioma, obesidade, ambiente, entre outras — com as quais um ser humano entra em contato ao longo da sua vida.
— Tudo a que nos expomos determinará o risco — alerta Fernández Montes.
Uma investigação publicada na Nature Reviews Clinical Oncology levanta a hipótese de que, embora as razões para o aumento do câncer de início precoce não sejam “completamente claras, provavelmente estão relacionadas com alterações na exposição a fatores de risco nas fases iniciais da doença” e/ou no início da idade adulta a partir de meados do século XX. Ainda assim, admitem: “Os efeitos específicos das exposições individuais permanecem em grande parte desconhecidos”.
Períodos precoces e maternidade tardia
As melhorias na detecção precoce, como o rastreio, podem ter contribuído para este aumento de casos, embora a sua influência seja certamente limitada porque a maioria dos programas sistemáticos de diagnóstico precoce se destinam à população mais idosa. Um exemplo é o câncer da mama, que possui técnicas de rastreio, mas em muitos países, como Espanha, está disponível a partir dos 50 anos.
O estudo de oncologia do BMJ alerta que a incidência deste tumor de início precoce também aumentou em locais onde não existem exames de rastreio de rotina. Isto sugere, segundo os investigadores, que, além do aumento de peso e do aumento de hábitos de vida pouco saudáveis, podem ter contribuído “mudanças nos fatores reprodutivos”. Os cientistas referem-se, por exemplo, ao início mais precoce da menstruação, ao uso de contraceptivos orais, ao aumento da idade para ter o primeiro filho e não amamentar.
Todos esses fatores também contribuem para aumentar o risco de câncer. Cada variável pode acrescentar pontos ao risco individual, embora, para começar, este seja baixo, concorda Xavier Castells, chefe de Epidemiologia e Avaliação do Hospital del Mar, em Barcelona.
— Quando olhamos para o risco de cinco anos, o fator mais importante continua sendo a idade. O risco médio de ter câncer da mama aqui na Europa é de 1,3%. Aquele que apresenta alto risco é de 2% ou 5 — tranquiliza a médica, que pertence a equipe de especialistas que elabora as recomendações para o rastreio do câncer da mama na União Europeia.
Andrea teve que passar por seis ciclos de quimioterapia, uma operação e outras tantas sessões de radioterapia para matar o tumor. Durante o tratamento, ela conheceu outras garotas como ela. Ainda mais jovem, com 24 anos.
— É um momento em que ninguém está seguro — reflete.
O estudo BMJ Oncology estima que, nesta década, a incidência de câncer de início precoce crescerá cerca de 31%, especialmente entre pessoas de 40 a 49 anos.
Nos consultórios, essa também é a percepção.
— Todos temos a percepção de que atendemos cada vez mais os mais jovens. Antes, o perfil dos pacientes com câncer de cólon que eu tinha na consulta era de pessoas com mais de 65 anos e era muito raro atender pacientes de 48 anos. Agora tenho um paciente de 36 anos, outro de 40 ou 43 anos. Esses casos antes eram raros — lamenta a oncologista Ana Fernández Montes.
A respeito do câncer do cólon, um estudo publicado na revista Science aponta que este tipo de tumor de início precoce “está aumentando em todo o mundo e deverá se tornar a principal causa de morte por câncer em pessoas dos 20 aos 49 anos nos Estados Unidos até 2030”. Os autores admitem que “as razões exatas ainda são desconhecidas”.
O câncer colorretal (do cólon ou do reto, localizado na extremidade inferior do trato digestivo) sempre foi um tumor associado ao envelhecimento – e é por isso que o rastreamento com exame de sangue oculto nas fezes geralmente é feito após os 50 anos de idade. Mas a obesidade, a diabetes ou o sedentarismo, por exemplo, também são fatores de risco tradicionalmente ligados a esta doença.
Elena Elez, oncologista do Hospital Vall d'Hebron e investigadora principal do grupo de câncer colorretal VHIO, destaca que 25% do câncer colorretal “tem um componente hereditário” e em pacientes com menos de 40 anos, era isso que acontecia já que “eles tinham um histórico familiar”. Agora, alerta o cientista, também se destaca o papel de todas as exposições humanas, inclusive desde a fase pré-natal.
O papel do microbioma
Os especialistas olham atentamente para o microbioma, que é todo o ecossistema de micróbios que povoam o intestino e participam de funções essenciais do organismo, como a sua própria defesa contra agentes estranhos. Não existem dois microbiomas iguais, tudo varia dependendo da exposição a determinadas circunstâncias: por exemplo, se um bebê nasce de cesariana ou parto natural; dependendo do tipo de dieta ou do consumo de antibióticos.
— Os humanos são o organismo invasor das bactérias. O microbioma é modulado com antibióticos, por exemplo, e o uso desses medicamentos agora é maior e pode estar surtindo efeito — explica Fernández Montes.
Elena faz parte de um projeto internacional para estudar o papel do microbioma, para saber se é um fator de risco e, se for o caso, como modulá-lo:
— Existe um tipo de bactéria, a Fusobacterium nucleatum, que tem sido vista com mais frequência em um tipo de câncer colorretal. A existência desta bactéria foi demonstrada no tumor e nas metástases hepáticas — exemplifica a oncologista de Vall d'Hebron.
Não se sabe se estas bactérias ou outras são transitórias ou causam a doença, mas a comunidade científica continua a investigar o seu potencial na génese ou no prognóstico do câncer.
— Certas bactérias tornam o tratamento imunoterápico mais eficaz ou com menos efeitos colaterais — enfatiza Elena.
Embora o risco individual médio seja baixo, tanto para sofrer de câncer da mama como de outros tumores, o aumento de neoplasias de início precoce abriu o debate sobre se é ou não apropriado avançar no rastreio ou refinar estes testes de detecção precoce para perfis de risco mais elevados. O grupo consultivo da União Europeia, do qual Castells participa, por exemplo, recomendou ampliar a idade para o rastreio do câncer da mama:
— Para as mulheres com risco médio, se propõe ampliar para os 45 anos aos 74 anos, o que seria aumentar a população-alvo em 50%. Reduzimos a idade porque acreditamos que já existem estudos suficientes mostrando um benefício de mortalidade que supera os riscos (como falsos positivos ou sobrediagnóstico). Entre 40 e 45 anos é recomendado não fazer exames, mas estamos fazendo estudos para ver se faz sentido começar mais cedo em um subgrupo de mulheres — explica Castells.
Ela se refere àqueles com alta densidade mamária —neste tipo de mama, potenciais lesões na mamografia não são bem avaliadas—, histórico familiar de câncer de mama, histórico pessoal de lesões benignas ou com predisposição genética.
Os cientistas reconhecem que ainda existem muitas “lacunas” na investigação. Na verdade, os investigadores de Harvard observam que esta “epidemia” de câncer de início precoce pode ser apenas uma parte de algo maior, dizem eles: “A ponta do iceberg ou um exemplo de uma tendência crescente para uma maior incidência de muitas doenças crônicas nas gerações jovens e/ou futuras”.
Fonte:https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2023/09/26/cancer-em-jovens-por-que-os-casos-em-pessoas-com-menos-de-50-anos-cresceram-quase-80percent.ghtml
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